Uma Startup Para Mendigar Melhor
Ou: Como a Europa se tornou num continente de intermediários que ajudam outros intermediários a pedir esmola
Banner: “European Onion” de Joana Dias
Na Web Summit 2025, sob os holofotes do maior evento tecnológico da Europa, Portugal coroou o seu grande campeão: uma startup que usa inteligência artificial para pedir dinheiro.
Não para criar, não para inventar, não para resolver qualquer problema concreto. Para pedir dinheiro a Bruxelas com maior eficiência.
A Granter venceu porque é o espelho perfeito daquilo em que nos tornámos. Um continente que não fabrica iPhones — pede subsídios para estudar se os deve regular. Que não faz chips — faz PowerPoints sobre soberania digital enquanto compra tudo à TSMC e à Samsung. Que não tem Googles nem Microsofts — tem consultoras que ensinam a preencher formulários de 47 páginas.
Convém clarificar: o problema não é o financiamento público. Os EUA financiaram a Internet, os semicondutores, o GPS e até a Tesla, que sobreviveu em grande parte graças a créditos de carbono e empréstimos federais. Inovação séria sempre dependeu de Estado forte, investimento público e risco estratégico.
O que não existe — nem nos EUA nem na China — é esta inversão grotesca em que o processo de pedir se torna mais sofisticado do que o próprio ato de inventar. O problema não é o dinheiro público: é um ecossistema onde o subsídio deixou de ser meio e passou a fim.
A Economia da Mendicância Profissionalizada
Portugal tem agora um mercado tão maduro de pedintes de subsídios que surgiu um negócio rentável para intermediar a mendicância. Uma meta-economia de dependência. Não são empresas que fazem coisas — são empresas que ajudam outras empresas a convencer Bruxelas de que merecem dinheiro para eventualmente fazer coisas.
E funciona: vinte milhões de euros já facilitados, dizem orgulhosos. Vão levantar 1,5 milhões. Há mercado, há clientes — a Fidelidade, a Marinha, universidades. Toda a gente quer a sua fatia do bolo europeu. Toda a gente menos os ingénuos que ainda acreditam que negócios se fazem resolvendo problemas reais de clientes reais que pagam com dinheiro real.
A linguagem típica do pitch é reveladora: “automatizamos a identificação de oportunidades de financiamento, otimizamos a narrativa de candidatura, maximizamos taxas de aprovação.” Não há tecnologia, não há risco, não há inovação — há gestão narrativa aplicada a verbas públicas. Literalmente, é esse o produto.
Uma Europa que pouco Inventa
A diferença entre a Web Summit e a inovação real não é a fantasia romântica da garagem versus Estado. É outra: nos lugares onde se constrói o futuro — EUA, China, Coreia — o financiamento público existe para permitir fazer coisas difíceis, não para alimentar consultorias que orbitam o próprio financiamento.
Nenhuma das empresas que mudou o mundo começou com uma candidatura ao Horizonte Europa. Sim, tiveram apoio público, proteção, compras governamentais, créditos fiscais. Mas o objetivo era construir carros elétricos, microprocessadores, redes, naves espaciais — não “otimizar candidaturas”.
O que aqui chamamos inovação é automação de formulários. Somos tão competentes a pedir dinheiro que já inventámos formas de pedir dinheiro para pedir dinheiro melhor. Recursividade kafkiana — genial, à sua maneira patética.
O Continente dos Rentistas do Século XXI
A Europa transformou-se naquilo que sempre acusou os países do Sul de serem: uma economia rentista. Só que, em vez de terra ou petróleo, vivemos de transferências de Bruxelas e de regulamentação. A nossa grande exportação é burocracia. A nossa grande inovação é conformidade.
E somos brilhantes a criar regras que impomos ao mundo — RGPD, DMA, ajustamentos de carbono — enquanto compramos à Califórnia e a Shenzhen tudo o que essas regras regulam.
Portugal é apenas o caso-limite. Aqui, “empreender” significa preencher bem o PT2030. “Inovar” é convencer um júri de que se é merecedor de uma bolsa. Os fundos de capital de risco não passam, muitas vezes, de dinheiro público em modo cosplay privado.
A Sangria Colonial Invertida
Durante séculos, extraímos riqueza, recursos e vidas de outros continentes. Hoje, dependemos estruturalmente de tecnologia, manufatura e energia externas. Não é o mundo que nos suga; somos nós que nos tornámos incapazes de produzir o que consumimos.
Dependemos da América para software, da China para quase tudo o que tem parafusos, da América Latina e da Rússia para comida. Em troca, exportamos turismo, regulação e, agora, conhecimento especializado em candidaturas.
E mantemos certezas morais inabaláveis: indignamo-nos onde convém, silenciamos onde prejudica. A economia do subsídio e a moralidade performativa vivem lado a lado — muitas palavras, pouca substância.
A Startup Como Epitáfio
A vitória da Granter na Web Summit não é acaso; é sintoma. É o que acontece quando uma civilização decide administrar o seu declínio em vez de reconstruir a ambição. Quando prefere otimizar migalhas em vez de produzir pão.
Estamos num momento em que a nossa “inovação” de topo é tecnologia para dependência. IA não para curar doenças, estudar novos materiais ou explorar o espaço — mas para preencher formulários mais depressa. É a ferramenta ideal de um continente fatigado: eficiência na resignação.
Enquanto EUA, China e outros disputam o século XXI, nós aperfeiçoamos a arte de distribuir fundos estruturais. Enquanto outros constroem, regulamos. Enquanto outros arriscam, justificamos.
Portugal não é um país “em desenvolvimento”. É pior: é um país desenvolvido em marcha-atrás. Possui universidades, institutos de investigação, fundos, aceleradoras — e usa tudo isso para cultivar um ecossistema de pedintes qualificados com pitch deck.
O Subsídio Comeu Tudo
Talvez a Granter seja mesmo o futuro — não por mérito, mas porque é o futuro que escolhemos. Um futuro onde empreender é capturar transferências, não criar valor. Onde inovação é otimização parasítica. Onde a economia real cede lugar à economia do favor.
A Granter, em rigor, resolve um problema real num sistema absurdo. O problema é celebrarmos a solução em vez de questionarmos o sistema. É como premiar alguém que inventou uma cadeira de rodas que sobe escadas quando o que precisávamos era de rampas.
Parabéns, Granter. Parabéns, Web Summit. Parabéns, Portugal. Parabéns, Europa.
Ganhámos o concurso. Perdemos o caminho.
O verdadeiro concurso a ganhar não é o de subsídios, mas o de recuperar o domínio sobre os recursos e o conhecimento que geramos.
O caminho será reencontrado quando a prioridade deixar de ser a captura de renda e passar a ser o propósito social do trabalho e da tecnologia.
É preciso que o esforço de produzir volte a valer mais do que a arte de pedir.