Minimizar custos sem os medir? Como?

Publicado por João em 29-10-25 20:10

Artigo Longo. EM 3 LINHAS:

  1. O ex-Secretário de Estado João Galamba criticou a proposta do Governo de estudar custos totais do sistema elétrico
  2. A sua posição: “não precisamos de estudos, o mercado resolve tudo”
  3. Este artigo mostra porque essa posição está errada e porque os preços da luz subiram 14% (o maior aumento da UE)

Este é o segundo artigo em que analiso textos do exSecretário de Estado da Energia, João Galamba, por dever de rigor: quem ocupou responsabilidades desta dimensão deve ser confrontado com o escrutínio técnico das suas afirmações. O objetivo é simples oferecer contraditório e verificação independente sobre matérias que exigem precisão, não retórica.

No texto mais recente, “Minimizar os custos totais do sistema” (24/10/2025), João Galamba reage ao anúncio do atual Secretário de Estado Adjunto e da Energia, Jean Barroca, sobre a intenção de realizar estudos de custos totais do sistema elétrico.

A conclusão de Galamba é categórica: “Não é um estudo, é um processo.”

Segundo ele, a minimização de custos não resulta de análises comparativas de tecnologias, mas da concorrência no mercado e de uma gestão “adequada” do sistema.

Concordo com várias premissas: o LCOE é insuficiente para comparar tecnologias; o sistema elétrico tem propriedades emergentes; e o gestor do sistema não escolhe diretamente o mix de geração.

Mas a conclusão de que estudos de custos totais são dispensáveis revela uma incompreensão fundamental sobre como se faz planeamento sério.

Um bom processo não dispensa análise rigorosa: exige-a.

Não é o estudo ou o processo é o estudo para o processo.

O que Galamba acerta

As limitações do LCOE são bem conhecidas: 1000 MW nucleares não equivalem a 1000 MW fotovoltaicos. Uns são despacháveis, outros intermitentes; uns fornecem inércia naturalmente, outros não.

O que é o LCOE?

O Levelized Cost of Energy (LCOE) é o custo médio de produzir 1 kWh de eletricidade ao longo da vida útil de uma central.

Exemplo simplificado: Se uma central solar custa 1 milhão €, funciona 25 anos e produz 50 milhões de kWh, o LCOE é 0,02€/kWh.

O problema: Não conta custos de integração no sistema (armazenamento, backup, reforços de rede).

Despachável vs. Intermitente

Despachável: Pode produzir eletricidade quando necessário

  • Exemplos: nuclear, gás natural, grandes hídricas
  • Vantagem: controlo sobre quando produzem

Intermitente: Produz quando há recurso natural disponível

  • Exemplos: solar (quando há sol), eólica (quando há vento)
  • Desafio: não produzem necessariamente quando mais precisamos

O sistema elétrico é, de facto, mais do que a soma das suas partes: tem propriedades emergentes características que só aparecem quando todas as partes trabalham em conjunto, como um engarrafamento que surge mesmo sem nenhum condutor individualmente querer criá-lo. Estas propriedades emergem da interação entre produção de eletricidade, consumo, armazenamento e redes de transporte.

E sim, o gestor do sistema não determina centralmente que centrais se constroem.

Até aqui, nada a objetar.

A falácia central: o processo sem análise

Galamba defende que o sistema deve ser “planeado adequadamente”, que se deve “tirar partido da diversidade de tecnologias” e que o gestor deve assegurar a “prestação ótima de serviços”.

A pergunta óbvia é: como se faz tudo isto sem analisar custos e trade-offs?

É como pedir a um engenheiro que desenhe uma ponte sem cálculos estruturais.

“Não precisa de estudo”, dir-lhe-íamos. “Confie no processo.”

O absurdo é evidente.

Como se define “planeamento adequado” sem métricas?

Como se identifica o que é “ótimo” sem comparações quantitativas?

Como se escolhe que “diversidade” faz sentido sem conhecer o custo de integração de cada tecnologia?

Galamba não responde.

A retórica cobre um vazio metodológico o mais perigoso de todos, porque soa prudente enquanto desarma a razão.

Mercado vs. planeamento: a confusão conceptual

Galamba escreve que “a geração é livre e concorrencial, não um sistema de planeamento central”.

Mas essa descrição ignora a realidade concreta do setor elétrico português, saturado de intervenção pública:

  • Contratos por Diferença e tarifas feed-in garantidas
  • Leilões solares com preços fixos por 15-20 anos
  • Quotas obrigatórias de renováveis
  • Licenciamento seletivo de centrais
  • Mecanismos de capacidade, que o próprio cita
  • PSO e subsídios à cogeração

Principais Intervenções Públicas no “Mercado Livre”

  • Contratos por Diferença (CfD): Estado garante preço fixo por 15-20 anos
  • Tarifas feed-in: Produtor recebe preço garantido superior ao mercado
  • Quotas obrigatórias: Lei obriga % mínima de renováveis
  • Mecanismos de capacidade: Estado paga para manter centrais disponíveis
  • PSO (Public Service Obligations): Taxas na fatura para financiar políticas energéticas

Resultado: Não é um “mercado livre” é um mercado altamente regulado.

Invocar o “mercado livre” num sistema desenhado por reguladores não é análise económica é wishful thinking.

O paradoxo da intervenção negada

O mesmo texto que rejeita planeamento reivindica, na linha seguinte, que o gestor do sistema deve dispor de “instrumentos de contratação” e “maior ou menor intervenção pública” para assegurar que os serviços são prestados “de modo ótimo”.

Mas ótimo segundo que critério?

Como se mede o que é ótimo sem comparar alternativas?

Saber o que é ótimo implica avaliar custos relativos de tecnologias, armazenamento, reforços de rede, serviços de sistema.

Ou seja, fazer exatamente aquilo que Galamba descarta.

Quer intervenção informada sem produzir informação um paradoxo perfeito.

A experiência internacional

Os países que lidam há mais tempo com a transição energética seguem o caminho inverso: estudam primeiro, decidem depois.

Reino Unido

O Department for Energy Security and Net Zero publica análises regulares de system costs, os chamados enhanced levelised costs, que incorporam custos de integração, reforço de rede e balanceamento.

O próprio BEIS (antecessor do DESNZ) desenvolveu estas métricas porque o LCOE isolado se tornara incapaz de captar o verdadeiro custo sistémico de cada tecnologia [1][2].

França

A RTE conduziu entre 2021 e 2022 o estudo Futurs Énergétiques 2050, dois anos de trabalho com todas as partes interessadas.

Modelizou seis cenários até 2050, quantificando custos totais, impactos ambientais e implicações para modos de vida [3][4].

O exercício simulou o funcionamento do sistema elétrico europeu hora a hora ao longo de 30 anos, com 200 cronologias meteorológicas [5].

É disso que falamos quando dizemos “planeamento”.

Alemanha

O Fraunhofer ISE publica desde 2010 estudos periódicos sobre custos de eletricidade, integrando não só o LCOE mas também os custos de armazenamento e flexibilidade do sistema até 2045 [6][7].

Estarão todos estes países errados?

Ou será Portugal o único suficientemente autoconfiante para planear sem medir?

Os custos que Galamba não quer ver

Renováveis intermitentes têm custos sistémicos reais, que alguém paga quase sempre o consumidor:

  • Curtailment: produção desperdiçada por falta de procura, armazenamento ou capacidade de exportação
  • Backup: centrais de gás ou hidroelétricas mantidas para cobrir períodos sem sol nem vento
  • Armazenamento: baterias, bombagem, hidrogénio tudo caro e finito
  • Reforços de rede: indispensáveis para acomodar geração distribuída e evitar congestões

Os 4 Custos Ocultos das Renováveis

  1. Curtailment: Desperdiçar eletricidade produzida (ex: muito sol ao meio-dia, pouca procura)
  2. Backup: Manter centrais de gás “de reserva” para dias sem vento/sol
  3. Armazenamento: Baterias ou barragens para guardar energia para mais tarde
  4. Reforços de rede: Novos cabos e subestações para transportar eletricidade de painéis solares distribuídos

Quem paga? O consumidor, através da fatura.

Inércia no Sistema Elétrico

Centrais tradicionais (turbinas a rodar) mantêm a frequência estável naturalmente como um volante que continua a girar mesmo com pequenas variações.

Painéis solares param instantaneamente se faltar sol, criando instabilidade. Resolver isto custa dinheiro (baterias, controladores eletrónicos).

O artigo anterior contém uma explicação sobre inércia no sistema elétrico e suas implicações.

Os números falam por si: entre o segundo semestre de 2023 e o mesmo período de 2024, os preços da eletricidade doméstica em Portugal subiram 14%, o maior aumento da União Europeia [8][9].

No primeiro semestre de 2024, o preço médio atingiu 0,254 euros por kWh ligeiramente abaixo da média europeia, mas entre os mais altos do nosso histórico recente [10].

O apagão espanhol de abril de 2025 ilustrou dramaticamente estes custos: como analisou o Eng. José Allen Lima, a fragilidade resultou de “inércia reduzida por falta de contributo dos geradores clássicos”. A Red Eléctrica de España que inicialmente se considerava isenta de culpa teve de solicitar medidas de exceção urgentes, incluindo “grande uso das térmicas CCGT” e investimentos em compensadores síncronos. Tudo custos que não constavam do LCOE das renováveis já instaladas.

Se “o processo” funciona tão bem, porque é que a fatura não baixa?

Porque a análise é indispensável ao processo

Planeamento energético sério integra estudo e processo num ciclo virtuoso:

  1. Análise identifica custos totais e riscos de diferentes cenários
  2. Planeamento define necessidades e instrumentos de contratação
  3. Mercado opera dentro desses parâmetros, gerando eficiência marginal
  4. Monitorização atualiza dados e ajusta políticas

Não escolhemos entre analisar e agir. Analisamos para agir bem. É assim em engenharia, medicina, finanças e devia ser também em energia.

Motivação: porque Galamba resiste à análise?

Três hipóteses podem explicar a resistência:

  1. Proteger decisões passadas. Como Secretário de Estado (2019-2022), Galamba defendeu políticas específicas; um escrutínio retrospetivo rigoroso poderia revelar que nem todas foram ótimas.

  2. Compromisso ideológico. O receio de que uma avaliação objetiva desfaça narrativas políticas consolidadas.

  3. Incompreensão técnica. Confundir “escolher tecnologias” (o que estes estudos não fazem) com “avaliar custos” (o que fazem e devem fazer).

Seja qual for a motivação, o resultado é o mesmo: planeamento sem informação, fé onde devia haver método.

Conclusão

O anúncio do Governo de estudar rigorosamente os custos totais do sistema é bem-vindo e necessário.

A resistência de Galamba não tem fundamento técnico nem suporte em boas práticas internacionais.

Portugal precisa de decisões baseadas em evidência, não em fórmulas vagas sobre “processos”.

O estudo deve ser transparente (pressupostos claros, dados públicos), abrangente (todos os cenários, inclusive os politicamente incómodos) e metodologicamente sólido.

Deve informar decisões, não substituílas mas sem essa informação, as decisões são inevitavelmente cegas.

Como concluiu Allen Lima sobre o caso espanhol: “o LCOE das renováveis não representa o seu custo total no sistema integrado” e “a perda por excedentes deve ser atribuída a estes investidores”. É precisamente para quantificar estes custos reais que os estudos são indispensáveis não opcionais.

Galamba tem razão numa coisa: minimizar custos não é apenas fazer um estudo.

Mas sem o estudo rigoroso que ele desvaloriza, também não é um processo sério é apenas esperança travestida de pragmatismo.

E os consumidores portugueses, que enfrentaram o maior aumento de preços da UE, merecem melhor do que fé.


Perguntas Frequentes (FAQ)

Isto significa que renováveis são más?

Não. Significa que precisamos de saber quanto custam realmente (incluindo custos de integração) para planear bem. As renováveis são essenciais para a descarbonização, mas devemos implementá-las de forma eficiente e transparente.

Outros países fazem estes estudos?

Sim. Reino Unido, França e Alemanha fazem-nos há anos, com metodologias robustas e transparentes. Portugal seria a excepção se não fizesse.

O mercado não resolve tudo automaticamente?

Não. Há subsídios, quotas obrigatórias e contratos garantidos pelo Estado. Precisamos de saber se estamos a gastar bem o dinheiro dos contribuintes e se as políticas adotadas minimizam efetivamente os custos para os consumidores.

Qual é o risco de não fazer estes estudos?

Decisões baseadas em intuição ou retórica política em vez de análise rigorosa. O resultado pode ser desperdício de recursos públicos, preços mais altos para consumidores e um sistema menos eficiente do que poderia ser.


Referências

[1] Office for Budget Responsibility (2023). A more comprehensive measure of the costs of energy. https://obr.uk/box/a-more-comprehensive-measure-of-the-costs-of-energy/

[2] Carbon Brief (2021). Wind and solar are 30-50% cheaper than thought, admits UK government. https://www.carbonbrief.org/wind-and-solar-are-30-50-cheaper-than-thought-admits-uk-government/

[3] RTE (2021-2022). Futurs énergétiques 2050: les chemins vers la neutralité carbone. https://www.rte-france.com/analyses-tendances-et-prospectives/bilan-previsionnel-2050-futurs-energetiques

[4] RTE (2022). Synthèse Futurs énergétiques 2050. https://www.rte-france.com/synthese-futurs-energetiques-2050

[5] RTE (2021). Futurs énergétiques 2050 Principaux résultats (PDF). https://assets.rte-france.com/prod/public/2021-10/Futurs-Energetiques-2050-principaux-resultats_0.pdf

[6] Fraunhofer ISE (2024). Photovoltaic Plants with Battery Cheaper than Conventional Power Plants. https://www.ise.fraunhofer.de/en/press-media/press-releases/2024/photovoltaic-plants-with-battery-cheaper-than-conventional-power-plants.html

[7] Fraunhofer ISE (2021). Levelized Cost of Electricity: Renewables Clearly Superior to Conventional Power Plants. https://www.ise.fraunhofer.de/en/press-media/press-releases/2021/levelized-cost-of-electricity-renewables-clearly-superior-to-conventional-power-plants-due-to-rising-co2-prices.html

[8] Eurostat (2025). Electricity price statistics Statistics Explained. https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=Electricity_price_statistics

[9] Eurostat (2024). Tax hikes hinder gas price drop, raise electricity costs. https://ec.europa.eu/eurostat/web/products-eurostat-news/w/ddn-20241028-1

[10] Observador (2024). Preço da eletricidade subiu 15% no primeiro semestre, mas Portugal paga menos que Espanha e média da UE. https://observador.pt/2024/10/28/preco-da-eletricidade-subiu-15-no-primeiro-semestre-mas-portugal-paga-menos-que-espanha-e-media-da-ue/