⚡ ARTIGO (MUITO) LONGO. EM 5 LINHAS:
- Governo diz: “vazio legal”. Realidade: cabo errado (sem certificação para pessoas), cedeu 4m após instalação, ninguém investigou, operou 601 dias com passageiros.
- Travões nunca testados, subdimensionados, registos de inspeções que não foram realizadas. Zero supervisão 2002-2025: Carris auto-certificada, IMT concordou.
- Normas europeias já exigiam: EN 12927/12929-1/1709 (obrigatórias), auditorias independentes, gestão de mudança. Nada precisava de nova lei.
- 16 pessoas morreram. Não por “vazio legal”. Por negligência grosseira documentada.
- Pergunta: quantas tragédias evitáveis para haver consequências reais — demissões, processos disciplinares, responsabilidade criminal?
📋 Índice:
- Cronologia legal (2002-2025)
- Linha do tempo com responsabilidades
- Anatomia das falhas
- O que devia ter acontecido
- Investimento vs qualidade técnica
- Responsabilidade profissional e criminal
- Conclusão
O acidente do Elevador da Glória: o que realmente falhou
O Governo anunciou que vai legislar para colmatar o “vazio legal” na supervisão de funiculares.
Mas é preciso deixar claro: não foi a falta de lei que fez o cabo partir.
Foi a ausência de engenharia aplicada, de supervisão técnica e de gestão responsável.
A Câmara Municipal de Lisboa anunciou que não irá reconduzir a administração da Carris. A decisão surge no dia em que o Governo admite um “vazio legal” na supervisão de funiculares. Mas será que o problema é mesmo a falta de lei? Ou será a falta de consequências quando as regras básicas de engenharia são ignoradas?
1. O que diz a notícia da RTP
Fonte: RTP – “Governo admite vazio legal na área de supervisão de funiculares”
(https://www.rtp.pt/noticias/politica/elevador-da-gloria-governo-admite-vazio-legal-na-area-de-supervisao-de-funiculares_n1692711)
O artigo confirma a cadeia de decisões (ou não-decisões) que o relatório preliminar do GPIAAF (Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários) já tinha revelado:
-
2002 – Decreto-Lei n.º 313/2002
Transpõe a Diretiva 2000/9/CE sobre instalações por cabo. Exclui “carros elétricos do tipo tradicional movidos por cabos” (art. 3.º).
👉 https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto-lei/313-2002-405295 -
2002–2003 – Interpretação administrativa
A Carris emite parecer dizendo que o Elevador da Glória e o Lavra são “carros elétricos tradicionais”. O então INTF (Instituto Nacional do Transporte Ferroviário, hoje IMT – Instituto da Mobilidade e dos Transportes) concorda. Resultado: ficam fora do regime de fiscalização. -
2020 – Decreto-Lei n.º 34/2020
Revoga o de 2002 e executa o Regulamento (UE) 2016/424. Cria regime adaptado para instalações históricas, sob autoridade do IMT.
👉 https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto-lei/34-2020-137444365Na prática, contudo, Glória e Lavra continuam excluídos, invocando a sua classificação como Monumento Nacional (Decreto n.º 5/2002 – https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto/5-2002-278071).
-
2020–2025 – Falta de supervisão externa
O IMT nunca aplicou o regime adaptado. A Carris continuou auto-certificada, sem auditorias externas. -
3 set 2025 – Acidente
Rotura de cabo, travões sem eficácia. 16 mortos, 21 feridos. -
20 out 2025 – Relatório preliminar do GPIAAF
👉 https://www.gpiaaf.gov.pt/upload/processos/d054263.pdf
Confirma: “Os ascensores foram excluídos de qualquer enquadramento legal e supervisão” por decisão da Carris, validada pelo INTF/IMT. E acrescenta: “Nada impedia que fossem aplicadas regras equivalentes, mesmo a título voluntário.” -
21 out 2025 – Reações
O ministro Miguel Pinto Luz anuncia que o IMT foi mandatado para preparar nova legislação. A CML decide não reconduzir a administração da Carris.
2. O que esta sequência mostra
O “vazio” existiu, sim – mas foi fabricado por interpretações (in)convenientes e falta de supervisão executiva.
Nada impedia que:
- A Carris aplicasse normas europeias harmonizadas (EN – European Norm), nomeadamente EN 12927 para cabos de aço, EN 1709 para ensaios e inspeções, e EN 12929-1 para requisitos gerais de segurança;
- O IMT ou o município exigissem auditorias externas;
- A gestão de topo perguntasse: “E a segurança? Quem valida os travões? Quem certifica o cabo?”
Essas perguntas nunca foram feitas – e isso não é uma lacuna legal. É uma lacuna de cultura técnica e de gestão.
3. Linha do tempo com responsabilidades
| Ano | Ato / Decisão | Atores | Efeito |
|---|---|---|---|
| 2002 | DL 313/2002 – exclui “carros elétricos tradicionais” | Governo / INTF | Cria base legal mas abre exceção que será explorada |
| 2002–03 | Parecer Carris + concordância INTF | Carris / INTF | Glória/Lavra fora da supervisão |
| 2020 | DL 34/2020 – novo regime (IMT) | Governo / IMT | Prevê regime adaptado, mas não aplicado |
| 2020–25 | Gestão sem verificação técnica | Carris / contratadas | Travões sem ensaio, cabo errado, ausência de auditoria |
| 2022 | Cabo incompatível instalado | Carris / MNTC | Cede 4m após instalação – ninguém investiga |
| 3 set 2025 | Acidente da Glória | — | Rotura de cabo, falha de travagem – 16 mortos |
| 20 out 2025 | Relatório preliminar GPIAAF | GPIAAF | Confirma causas técnicas e institucionais |
| 21 out 2025 | Reações políticas | Governo / CML | Nova legislação prometida, administração não reconduzida |
4. Anatomia das falhas: análise sistémica
O acidente não teve uma única causa – teve múltiplas falhas encadeadas, desde decisões institucionais até erros operacionais. O diagrama seguinte mostra como as responsabilidades se distribuem entre níveis (institucional vs operacional) e natureza (técnica vs legal):
Nota: As posições representam análise qualitativa baseada no relatório GPIAAF. O objetivo é visualizar a natureza sistémica das falhas.
Leitura do diagrama:
- Superior direito: Decisões institucionais que criaram o vazio legal
- Superior esquerdo: Falhas de gestão em garantir engenharia adequada
- Inferior esquerdo: Erros técnicos no terreno
- Inferior direito: Violações procedimentais no dia-a-dia
O diagrama mostra claramente: não houve uma única falha isolada – houve falhas sistémicas em todos os quadrantes.
5. O que devia ter acontecido
Mesmo sem enquadramento formal, boas práticas internacionais exigiam:
- Receção técnica de cabos com certificação para uso humano e ensaios não-destrutivos (norma EN 12927);
- Ensaios periódicos de travagem e cálculo de capacidade (norma EN 1709);
- Gestão formal de mudança – avaliação de riscos para substituição de componentes críticos;
- Auditoria independente, mesmo a título voluntário.
Nada disto requer nova lei – apenas competência e responsabilidade.
E o investimento em manutenção?
A Carris alega ter duplicado o investimento em manutenção entre 2015 e 2025. É verdade – mas investir mais não significa investir bem.
O relatório do GPIAAF mostra que:
- Dinheiro foi gasto, mas sem auditorias independentes
- Equipas não tinham formação específica adequada
- Não havia processos de validação técnica
- Sistemas críticos não foram testados conforme normas
Gastar mais sem garantir qualidade técnica é ilusão de segurança. Quando o cabo cedeu 4 metros logo após instalação, qualquer engenheiro competente deveria ter parado tudo. Não aconteceu. Durante 601 dias, esse cabo operou com pessoas a bordo.
6. Responsabilidade profissional e criminal
Dezasseis pessoas morreram. Não foi azar nem “falha técnica imprevisível”. Foi negligência grosseira documentada.
O relatório do GPIAAF mostra:
- Cabo incompatível com especificações internas, sem certificação para transporte de pessoas
- Travões nunca testados para o cenário de falha de cabo
- Inspeções registadas como feitas, mas “evidências de que não foram realizadas”
- Técnicos sem formação específica em trabalhos críticos
- Zero supervisão externa independente durante 23 anos
O que diz a lei
O Código Penal Português prevê:
- Artigo 137.º: Homicídio por negligência (até 3 anos de prisão)
- Artigo 148.º: Ofensa à integridade física por negligência
A negligência grosseira distingue-se do erro técnico pela violação evidente de deveres de cuidado que qualquer profissional competente reconheceria como essenciais.
Dever de cuidado acrescido
Engenheiros que subscrevem projetos, fiscalizam obras ou gerem sistemas críticos de segurança têm responsabilidade profissional acrescida. A Ordem dos Engenheiros estabelece:
“O engenheiro deve recusar subscrever trabalhos ou emitir pareceres que não tenham sido objeto de estudo adequado ou que não estejam em conformidade com as regras da arte e com as normas de segurança aplicáveis.”
Aceitar um cabo sem verificar certificação, ver que cedeu 4 metros e não investigar, registar inspeções não realizadas, permitir operação com travões não testados – isto não são falhas técnicas. São violações de deveres profissionais elementares.
Cadeia de responsabilidades
As falhas documentadas implicam responsabilidades em múltiplos níveis:
Técnico: Quem especificou o cabo errado? Quem aceitou a entrega? Quem registou inspeções não realizadas?
Supervisão: Quem validava o trabalho? Quem aprovava relatórios? Porque não havia auditorias independentes?
Gestão: Quem garantia formação adequada? Quem decidia sobre investimentos em segurança? Quem tinha obrigação legal de garantir segurança dos passageiros?
Institucional: Porque o IMT não fiscalizava? Porque a CML não exigia auditorias? Porque a Ordem dos Engenheiros não era consultada?
O que acontece agora
O Ministério Público abriu inquérito criminal. A Polícia Judiciária recolheu provas. O relatório do GPIAAF é documento técnico com valor probatório.
A Ordem dos Engenheiros tem poderes disciplinares desde advertência até expulsão. Processos disciplinares são independentes dos criminais – podem e devem avançar mesmo antes de condenações.
A não-recondução da administração da Carris é um primeiro passo. Mas trocar pessoas sem mudar a cultura não resolve.
A questão ética
A pergunta persiste: quantas tragédias evitáveis são necessárias para que responsáveis técnicos e administrativos percebam que “eu não sabia”, “seguimos os procedimentos internos” ou “não havia obrigação legal” não chega?
Em democracias funcionais, engenheiros e gestores respondem pessoal e profissionalmente quando decisões – ou omissões – causam mortes evitáveis.
Sem consequências reais – demissões, processos disciplinares, responsabilidade criminal onde aplicável – a cultura não muda.
E a pergunta fundamental: que mecanismos vamos criar para que, na próxima vez, antes do acidente, alguém tenha coragem de parar tudo e dizer “isto não está seguro”?
Porque sem essa cultura de segurança, sem consequências pessoais para quem falha gravemente, a próxima tragédia é apenas questão de tempo.
7. Conclusão
O problema da Glória não nasceu num vazio jurídico: nasceu num vazio de liderança técnica e de responsabilidade profissional.
O IMT não supervisionou. A Carris não garantiu engenharia. A gestão não perguntou o essencial. E quando sistemas críticos falharam – inspeções não realizadas, travões não testados – ninguém parou para perguntar porquê.
A não-recondução da administração da Carris é necessária, mas insuficiente. Nova legislação pode ajudar, mas não resolve o fundamental:
“E a segurança? O que estamos a fazer acerca disso? Quem valida? Quem responde quando falha?”
Enquanto essas perguntas não forem rotina – em Lisboa ou no resto do país – e enquanto não houver consequências pessoais e profissionais para quem as ignora, nenhuma lei evitará o próximo acidente.
A mudança cultural começa quando alguém ousa dizer “não” antes da tragédia. E continua quando há consequências reais depois dela.
Fontes
- RTP: Governo admite vazio legal na área de supervisão de funiculares
- Decreto-Lei n.º 313/2002 – Regime jurídico aplicável à construção, colocação em serviço e exploração das instalações por cabo para o transporte de pessoas
- Regulamento UE 2016/424 – Relativo às instalações por cabo, revoga Diretiva 2000/9/CE
- Decreto-Lei n.º 34/2020 – Execução do Regulamento (UE) n.º 2016/424
- Decreto n.º 5/2002 – Classificação de 107 imóveis como monumentos nacionais (inclui Elevador da Glória)
- Nota de Abertura de Investigação – GPIAAF (6-Set-25)
- Relatório preliminar GPIAAF (20-Out-25)
- Normas EN 12927 / 12929-1 / 1709 (instalações por cabo – CEN, Transporte de Pessoas)
- Código Penal Português – Artigos 137.º e 148.º
- Código Deontológico da Ordem dos Engenheiros